Reportagem de Santi Carnieri, no El Surtidor, com tradução na Ponte Jornalismo

Cerca de 20 mil paraguaios cultivam e processam planta consumida em todo o continente. Leis arcaicas os reprimem e os submetem a máfias e à repressão policial. Eles insistem, para não se render ao agronegócio. Até quando irá o preconceito?

Reportagem de Santi Carnieri, no El Surtidor, com tradução na Ponte Jornalismo

A substância ilegal mais consumida do mundo é a cannabis. E a mais apreendida por operações policiais desde a Terra do Fogo, no sul da Argentina, até o norte da Amazônia é a maconha paraguaia prensada. Também chamada de paraguacho ou paraguaio, dependendo do lado da fronteira. Mas na verdade é a brasiguaio. Somente 4% fica no Paraguai. Não existiria se não fosse pelo Brasil, que precisa da produção para suprir a demanda de seus mais de 210 milhões de habitantes.

O Brasil consome 80% da maconha ilegal que o Paraguai produz. O restante vai, principalmente, para Argentina, Uruguai e Chile. Como este país, de pouco mais de sete milhões de habitantes, se tornou o maior produtor de cannabis da América do Sul?

A produção de cannabis neste país é comparável apenas a países como México, Índia ou Marrocos. Mas não é uma planta nativa. A maconha chegou do Brasil e para o Brasil no final dos anos 60. Os brasileiros procuraram locais remotos, mas conectados a suas grandes cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, para as primeiras áreas de cultivo. As montanhas de Amambay e os arredores da cidade fronteiriça de Pedro Juan Caballero foram o território escolhido.

Desde os anos 90, a expansão da monocultura de soja, a venda maciça de terras a colonos brasileiros e a concentração quase feudal da propriedade da terra provocaram o deslocamento para as cidades de pelo menos um milhão de camponesas e camponeses. Aqueles que ainda resistem no campo cultivando alimentos não podem competir com os preços daqueles contrabandeados da Argentina e do Brasil. Não há maneiras de comercializar seus produtos. O apoio agrícola às famílias é insuficiente. Cultivar milho, mandioca, tomate ou qualquer outra coisa não é suficiente para compensar os gastos.

Nas décadas de crise do modelo produtivo camponês, mais contrabandistas brasileiros vieram procurar maconha. Com um pouco de propina para a polícia, as famílias podiam se assegurar de continuar a cultivar maconha e ter dinheiro para comprar carne. O negócio cresceu e se tornou uma das poucas saídas econômicas para milhares de pessoas não só de Amambay, mas também de Alto Paraná, San Pedro e Canindeyú.

Hoje, embora não haja monitoramento das culturas como em outros países da região, o governo estima que existam cerca de 7.000 hectares de plantações ilegais de maconha no Paraguai. Outras fontes estimam que pode haver até 20.000. Nesse território trabalham pelo menos 20 mil pessoas, pouco menos do que as empregadas pela Polícia Nacional, que conta com 26.000 funcionários. Às vezes, famílias inteiras trabalham em plantações pertencentes a máfias “brasiguaias” (descendentes de brasileiros) ou do maior grupo criminoso da América do Sul, o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Muitas dessas famílias camponesas fazem isso como último recurso para não migrar. A menos de 100 quilômetros da fronteira brasileira, Abel Bernal, um agricultor paraguaio de 23 anos, usa os três hectares de sua terra familiar para plantar maconha. Todos os dias ele se levanta ao amanhecer e trabalha cerca de oito horas em suas terras.

A fértil terra vermelha lhe deu em três anos quatro colheitas de cerca de mil quilos. E em cada ocasião vendeu sua produção por cerca de 3.000 dólares para compradores brasileiros. Eles são os visitantes mais habituais em seu povoado com cerca de 4.000 habitantes, popularizado na imprensa local pelas enormes apreensões de cannabis que a polícia realiza ali de vez em quando. Aparece em mapas oficiais como San José del Norte, mas é mais conhecido como Kamba Rembe.

“Os grandes narcotraficantes não existem em Kamba Rembe, esses estão em outro lugar”, explica Abel. Ele diz que sua comunidade quer parar de cultivar maconha.

Em 2015, após uma das cotidianas movimentações da Secretaria Antidrogas e da polícia para queimar e cortar plantações, houve um protesto incomum em Kamba Rembe: mil habitantes, entre famílias inteiras, idosos, meninas e meninos, saíram pelas estradas empoeiradas com faixas. Eles não pediam a legalização da cannabis, que chamam de “erva maldita”: pediam para voltar a plantar mandioca ou tomates em vez de maconha. Mas para isso precisavam de serviços públicos mínimos, investimentos do Estado em estradas, créditos agrícolas e o fim da extorsão policial.

O governo de então apressou a construção de 160 novas casas e ajudou a canalizar a água e a repartir as terras. Entregou sistemas de irrigação e tecidos para sombrear as plantações. Também introduziu a produção de bichos-da-seda e entregou mais de 40.000 mudas de tomate, mas grande parte da colheita apodreceu porque os produtores não conseguiram transportá-la para nenhum grande mercado.

Hoje, os poderes Executivo e Legislativo ampliam a discussão de uma lei que regulamente o cultivo da cannabis, como fez o Uruguai. Uma lei que deveria ser urgente para o país da América do Sul que abastece toda a região. Uma lei que permita a libertação de milhares de famílias das quadrilhas de traficantes. Um mercado que poderia gerar até 10 bilhões de dólares por ano de forma legal.


As vidas e os milhões que se perdem por proibir uma planta

A cannabis é produzida em todos os países da América do Sul, mas nenhum o faz como o Paraguai. Sua produção supera a da Colômbia e do Brasil e atinge todos os países da região. Só no Uruguai, quase 100% da maconha apreendida em 2017 veio do Paraguai e foi contrabandeada por via terrestre através da Argentina e do Brasil.

Cultivar, colher, coletar, prensar, esconder e transportar entre 15 mil e 30 mil toneladas por ano dá muito trabalho. A cadeia produtiva envolve pelo menos 20 mil produtores, além de catadores, transportadores voluntários e involuntários, hoteleiros, casas de câmbio, importadores de veículos e eletrônicos, e até restaurantes que funcionam para encobrir o transporte da cannabis e a lavagem de todo o dinheiro que é obtido ilegalmente.

De acordo com estimativas subdimensionadas do governo, o país cultiva cerca de 7.000 hectares de cannabis a cada ano, embora legisladores e especialistas calculem que possa ser três vezes mais. Cada hectare pode gerar pelo menos 1.500 quilos por safra. Um quilo de maconha prensada é vendido na plantação por cerca de 6 dólares. Se fossem apenas 7 mil hectares plantados, quem coleta e vende no atacado geraria uma receita de 63 milhões de dólares a cada safra.

Grande parte desse dinheiro azeita a máquina necessária à sobrevivência da máfia. A Secretaria Nacional Antidrogas (Senad) estima que a corrupção policial e institucional consuma 49 milhões dos 63 milhões de dólares das receitas levantadas pela máfia. Graças ao clima subtropical, o Paraguai pode cultivar até três safras de cannabis por ano. Assim, as autoridades corruptas arrecadam cerca de 150 milhões de dólares anualmente para seus bolsos. Centenas de milhões que poderiam ser regulamentados pelo Estado.

Toneladas de maconha prensada paraguaia são transportadas por via terrestre, fluvial e aérea.

A cannabis é transportada em caminhões de carga de grãos, madeira, carvão, materiais de construção. Vai em carros, caminhões 4×4, ônibus. Também segue em aviões de todos os tipos. Barcos e jangadas passam a maconha brasiguaia pelas permeáveis fronteiras sul-americanas, alimentando a economia subterrânea, que não aparece nas estatísticas.

Em todo o país surgem novos hotéis e bairros de mansões VIP, com seus veículos de luxo e janelas com vidros escuros. Com réplicas de catedrais ou animais selvagens enfeitando seus jardins. A ostentação de quem lucra com esse e outros mercados ilegais.

Quando o pacote de um quilo está pronto para “exportação”, perto da fronteira com o Brasil, seu preço sobe para cerca de 43 dólares. Quando passa para o outro lado, seu preço ultrapassa os 300 dólares. O lugar onde é vendido mais caro na região é no Chile. O preço ali chega a 1.000 dólares o quilo.

O que mais se vê dessa economia subterrânea é a violência que produz. O Paraguai tem uma das cinco menores taxas de homicídio da região, mas na fronteira com o Brasil possui uma das mais altas do mundo. Quase 70 assassinatos a cada 100.000 habitantes por ano, de acordo com o Ministério do Interior. Nível similar a Honduras, o país com a maior taxa de homicídios do planeta.

As organizações criminosas brasileiras Primero Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV) ou a paraguaia Clan Rotela aproveitam o silêncio e a impunidade para assaltar, agredir e entrar em confronto entre si e com as autoridades. Assim, disputam o controle da produção da maconha e de suas rotas, que são as mesmas da cocaína que vem da Bolívia e do Peru.

Todos os dias a televisão dedica espaço às operações policiais ou da Senad. Imagens de prisões de matadores, pequenas apreensões ou cortes e queimadas de plantações de maconha monopolizam os horários nobres dos canais de notícias. Com o apoio da Polícia Federal brasileira e de agentes do departamento antidrogas dos Estados Unidos (DEA), 226 agentes especiais paraguaios treinados para operações de elite e alta tensão aparecem na TV cortando milhares de plantas de maconha com facões. Em 2019, o presidente Mario Abdo apareceu ao vivo cortando pés de maconha ao lado da então ministra da Segurança argentina, Patricia Bullrich.

Às vezes queimam as plantações para ser mais rápido. A iniciativa é paga com dinheiro público, mesmo não sendo efetiva. Cada vez que a Senad ou a polícia corta uma plantação, em uma área arborizada do Paraguai outras quatro aparecem em seu lugar. O governo relata a cada ano uma média de 1.400 hectares de maconha destruídos em relação aos 7.000 que dizem existir.

A resposta do Estado à cannabis tem sido a “luta contra o narcotráfico”, doutrina imposta pelos Estados Unidos desde a década de 1970 e que se limita à perseguição à produção e a criminalização do uso de drogas. Enquanto isso, os países vizinhos já buscam outras respostas, como a regulamentação no Chile, Argentina e Uruguai.

A regulamentação da cannabis para fins recreativos no Uruguai retirou do mercado ilegal lucros de mais de 22 milhões de dólares. Mais do que o dobro do orçamento anual da Senad paraguaia.

Em um ritmo lento, o Paraguai aprovou, em dezembro de 2017, a Lei 6007, que regula a produção e o consumo de cannabis e seus derivados para fins médicos e científicos. Quase três anos depois, o governo ainda não a colocou em execução. A prioridade do negócio, até agora, tem sido dada às grandes farmacêuticas.

Mas a produção não para. Mais de 20.000 agricultores continuam a se arriscar a cultivar cannabis ilegalmente, famílias se arriscam a produzir seu próprio óleo para dar aos filhos doentes e um empresário se incrimina perante o Ministério Público por produzir sua própria maconha em grande escala. 


Jesus teria sido preso no Paraguai por uso de cannabis

O boxeador Mike Tyson conta que fuma maconha todos os dias e é dono de uma empresa que cultiva cannabis na Califórnia. Jennifer López usa um creme com cannabis para evitar as olheiras. Obama fumava na universidade por diversão. Rihanna e Morgan Freeman militam por sua legalização, assim como a cantora Miss Bolivia, o filósofo Darío Sztajnszrajber, o músico Pablo Lescano e a atriz Malena Pichot na Argentina, Jorge Drexler no Uruguai e o ex-ministro da Cultura do Brasil, Gilberto Gil.

Ela é receitada por médicos no Canadá, Estados Unidos e Europa para tratar dezenas de doenças. No passado, a rainha Carlota Joaquina, esposa do rei João VI, de Portugal, pediu maconha em seu leito de morte para reduzir suas dores. Também era usada por Jesus Cristo e seus apóstolos. Misturavam a cannabis em seus unguentos para fazer “milagres”. Mas hoje, no Paraguai, o país com as maiores plantações da América do Sul, o mesmo em que muitas avós guardam um vidrinho com álcool e maconha para o reumatismo, as pessoas que fumam a planta em público são consideradas “viciadas”. Inclusive aquelas que precisam dela para sobreviver.

Sexta-feira à noite, sob os arcos brancos do aqueduto da Lapa, no Rio de Janeiro, centenas de pessoas de todas as classes e cores se misturam, entre caipirinhas e funk. Alguém tira do bolso um objeto quadrado marrom-escuro, seco, com galhinhos, sementes e alguma flor de cannabis.

“Tem cheiro de mel”, diz um. “Não. É xixi. Amoníaco”, responde Dani, paraguaia que vive no Rio de Janeiro desde 2015.

Ela o despedaça, enrola no papel e acende antes de oferecer para suas amigas. É o brasiguaio, a maconha prensada feita para o Brasil no Paraguai. No Rio de Janeiro custa entre 2 e 4 dólares o grama. A metade disso na favela, conta Dani. Direto na plantação, o quilo custa 6 dólares.

Hoje, só 4% do que se cultiva no Paraguai fica no Paraguai. A maior parte vai para cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Montevidéu, Santiago do Chile e Buenos Aires. Da Patagônia, no sul da Argentina, até a Amazônia, a criminalização obriga usuários de cannabis a comprar o prensado brasiguaio em vez de plantar em suas casas, o que sustenta um gigantesco negócio ilegal.

Dani odeia a maconha que inunda o Brasil. Chama-a de “maconha com sangue” pois sabe que vem de plantações onde milhares de agricultoras e agricultores trabalham por centavos — forçados pela necessidade. Compra às vezes e procura cultivar suas próprias plantas em casa, ainda que o autocultivo não seja permitido no país. No Paraguai, quem tem mais de dez gramas “em cima” ou uma planta em casa é punido com até vinte anos de prisão.

No Brasil, começou uma regulação silenciosa. Em dezembro de 2019, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou a venda de produtos à base de cannabis em farmácias e já foram concedidas mais de 7 mil licenças de importação de produtos derivados da cannabis para uso medicinal. Algumas associações e pacientes conseguiram na Justiça o direito ao altocultivo. O consumo de cannabis continua a ser ilegal, sem pena de prisão, enquanto o tráfico de drogas é punido com até 15 anos atrás das grades.

A cannabis chegou no Brasil com os colonizadores portugueses. Por seus usos têxteis ou industriais, esteve presente nas velas e cordas das embarcações, nas roupas, unguentos e pomadas. Suas sementes eram alimento para pessoas e para o gado. Têm quase tanta proteína quanto a soja.

Seu uso ritual está registrado no Antigo Testamento. Ele é mencionado diversas vezes em hebreu como Kne-Bosem, que pode ser traduzido como “cálamo [instrumento de escrita feito com o caule de uma planta] aromático” ou “cana perfumada”, dependendo da edição. O médico paraguaio Hernán Codas Jaquet retirou da Bíblia a receita da “santa unção” ou “unção de Cristo”. Segundo ele e outros etimólogos, linguistas, antropólogos, botânicos e historiadores como o canadense Chris Bennet, a cannabis aparece nos livros sagrados do cristianismo junto a azeite de oliva, mirra, canela e outros ingredientes.

“Muitos milagres de Jesus são atribuídos à cannabis”, diz Codas Jaquet, urólogo e cirurgião veterano. Os supostos milagres eram realizados em pessoas que não podiam caminhar por conta da artrite ou reumatismo, ou pessoas psicóticas, epilépticas ou autistas, que acreditavam estar sob possessão demoníaca por conta de suas convulsões. “Jesus Cristo dava a toda essa gente a cannabis”, conta Codas sobre a planta que, garante, pode tratar mais de 700 doenças e enfermidades diferentes.

Seus benefícios médicos são tantos que o seu uso medicinal foi legalizado nos últimos anos em países como Argentina, México, Estados Unidos, Canadá e na União Europeia. Até a Comissão de Narcóticos das Nações Unidas reconheceu as propriedades medicinais da cannabis, incluindo sua resina e seu óleo.

Na história moderna, a venda da maconha foi proibida pela primeira vez no Brasil, em 1830, por vereadores do Rio de Janeiro. No último país a abolir a escravidão, hoje a maioria das pessoas encarceradas são negras (quase 67%) e grande parte dos delitos está relacionada com as drogas.

Existem diferentes interpretações sobre o limite do que é consumo e o que é tráfico e isso quem decide é a polícia. E claro, se você é negro, te prendem, e se você é branco e classe média, se livra”, conta Ivan Viana, de Manaus, capital do Amazonas, onde trabalha como professor e bibliotecário na escola pública do seu bairro. Ele também é um conhecido ativista canábico que promove o autocultivo para frear o tráfico.

Manaus fica a cerca de 3.400 quilômetros ao norte da fronteira brasileira com o Paraguai, mas também recebe a maconha prensada paraguaia com desenvoltura. É a mais consumida ali, diz Ivan. Além disso, como zona franca portuária, é um lugar de redistribuição internacional. “Quem sabe em que outros lugares do mundo chegará por mar saindo daqui”, indaga.

Onde há PCC, há prensado brasiguaio

Em quase todo o Brasil se consume o baseado paraguaio que o Primeiro Comando da Capital (PCC), uma organização criminosa, distribui desde as cordilheiras de Amambay, dos bosques de San Pedro e, acima de tudo, desde as fazendas dos agropecuaristas brasileiros assentados no Paraguai, onde a Secretaria Antidrogas detectou que estão 60% das plantações. “Onde há PCC, há prensado do Paraguai, é uma das suas fábricas”, explica Ivan Viana.

Em Manaus, o brasiguaio custa entre 3 e 5 dólares. O produto que chega ao usuário é um cúmulo de despropósitos, pois, apesar de contar com uma terra boa, é cultivado quase sem conhecimento e por obrigação pela maioria dos agricultores do Paraguai. Viana resume a questão: as plantas são picadas sem separar as flores dos galhos e folhas. São prensadas com muita pressão sem estarem suficientemente secas, para que pesem mais. E são embaladas com plástico em placas de um quilo para que não tenham cheiro forte, de modo a facilitar seu transporte.

Essa planta maltratada é enviada por terra, rios e ar, armazenada até ser vendida, um processo que pode durar meses. Nesse meio tempo, ainda úmida e exposta a altas temperaturas, escurece e começa a gerar gases tóxicos, como o amoníaco, que empresta ao brasiguaio seu odor característico, muito parecido com o da urina.

Os 20% da produção ilegal de maconha do Paraguai que não chegam ao Brasil são levados até Uruguai, Chile, Bolívia e Argentina. O lugar mais distante onde ela já foi encontrada é a província argentina de Santa Cruz, mais de 4.000 quilômetros distante do seu lugar de origem, em uma cidadezinha próxima à ilha da Terra do Fogo, onde chega somente de carro, por meio de empresas de transporte privadas, a quase 30 dólares o grama.

Desobedecer para sobreviver: as mães que cultivam cannabis para curar seus filhos

Enquanto quase toda a América avança na regulação da planta, as autoridades do Paraguai, maior produtor depois do México, mantêm sua proibição e barram também o acesso a pessoas que precisam dela para viver.

Uma delas é a Verónica, que aos seis meses começou a sofrer convulsões que duravam horas. “Qualquer coisa a fazia convulsionar, o frio, uma reunião de pessoas em casa. Era um estresse constante. Algumas crises aconteciam enquanto ela dormia. Tínhamos que fazer turnos para dormir”, conta sua mãe, Cynthia Farina. Ela teve que ser internada 80 vezes, duas delas em UTI. Em uma delas, os médicos usaram o coma induzido e a respiração artificial para salvá-la.

A epilepsia de Verónica resistia a todos os remédios receitados. Eles também a deixavam ausente, sem fala e provocavam anorexia. Só conseguia caminhar e agarrar objetos. Quando Verónica tinha cinco anos pediram ajuda a uma amiga que estava numa organização chamada Mamá Cultiva [Mamãe Planta]. A amiga os ensinou a fazer sua própria manteiga de cannabis para que desse à filha com um pouco de pão uma vez ao dia. “Foi incrível. Começou a se conectar, a nos olhar, a sorrir e a ter apetite. Foi uma mudança imediata, em um ou dois dias”, relata Cynthia.

Após essa experiência, se uniram ao Mamá Cultiva, uma organização sem fins lucrativos que incentiva o uso da cannabis medicinal no Paraguai e em toda América Latina para pessoas com epilepsia de difícil controle, câncer e outras doenças.

Desde então, Verónica toma três gotinhas de óleo de cannabis pela manhã e três à noite. Hoje tem nove anos, fala e vai à escola. Suas convulsões se reduziram a quatro ou cinco segundos e só ocorrem a cada quinze dias, enquanto dorme. “Ela nem percebe”, diz sua mãe. São mais de três anos sem a necessidade de ir ao hospital. Os remédios e as hospitalizações custavam pelo menos 4 milhões de guaranis por mês — cerca de 3.600 reais — antes do experimento com a cannabis medicinal.

Cynthia hoje é a presidenta da Mamá Cultiva no Paraguai e foi uma das principais impulsionadoras da lei aprovada em 2017 que obriga o governo do país a “garantir o acesso gratuito ao óleo de cânhamo e demais derivados da planta da cannabis” às pessoas que cumpram os requisitos para fazer parte do programa. A lei foi aprovada após uma mobilização cidadã, mas até agora o governo só permite a importação a uma empresa, o que leva milhares de pessoas a praticar a desobediência civil constante para sobreviver. Desobediência essa que só consiste em ter uma erva a mais em suas casas.

Legalize já

A maconha é usada para tratar o câncer, o Parkinson, o Alzheimer e a epilepsia. Suas sementes estão repletas de proteínas e ômegas. Serve para fazer papel e biocombustível, suas fibras são usadas para construção de casas e carros. Também é uma droga recreativa para 192 milhões de pessoas e nunca foi registrada uma morte por conta do seu consumo. O que aconteceria se o maior produtor da América do Sul legalizasse a maconha?

Henry Ford usou maconha e soja na carroceria de um protótipo de automóvel sustentável em 1942, “the soybean car [o carro de soja]”. Hoje, o cânhamo, como é chamada a planta da maconha usada para fins industriais, está presente em modelos como o Alfa Romeo Giulia ou o Peugeot 308 e em um carro esportivo “mais forte que o aço.”

Um hectare de cânhamo produz a mesma quantidade de polpa que quatro hectares de árvores e demora só alguns meses para crescer. Produz três vezes mais fibra que o algodão, com menos água e sem usar pesticidas. Há garrafas feitas com base no óleo de cânhamo que são biodegradáveis em menos de 280 dias — as PET levam 420 anos. As sementes da planta contêm quase tanta proteína como as da soja e seis vezes mais ômega 3 que o atum fresco.

Todo esse potencial é encontrado numa planta cujo cultivo é proibido no Paraguai. Mas, em outras partes do mundo, a relação com a cannabis é diferente.

Em quase qualquer lugar da União Europeia, é possível ter acesso a óleos, cremes, xampus, géis e até comida para gatos com cannabis medicinal, ainda que o autocultivo e o uso recreativo não estejam regularizados.

O Uruguai foi o primeiro país do mundo a regulamentar seu uso em 2013. Desde então, com registro prévio, seus habitantes puderam comprar maconha, inclusive as suas flores, em farmácias autorizadas; também podem ter até seis plantas em casa ou fazer parte de um clube com cultivo coletivo. Além disso, existem empresas autorizadas a produzir com fins científicos e de uso medicinal.

O Canadá foi o segundo país do mundo a legalizar a maconha com fins recreativos. Na Bolsa de Valores, esse mercado está estimado em mais de um bilhão de euros e pode alcançar os quatro bilhões em 2024. Nos Estados Unidos — o país que iniciou a guerra contra as drogas nos anos 1970 — a maioria dos habitantes vive sob leis que regulam a maconha. Em 15 estados ela foi despenalizada totalmente e em 35 seu uso medicinal é permitido. A indústria da cannabis nos EUA projetava alcançar 19 bilhões de dólares em vendas em 2020. E 45 bilhões em 2025. O retorno em impostos dessa indústria ultrapassou 1,04 bilhões de dólares em 2018.

Desde 2015, a Jamaica permite o autocultivo o porte de 50 gramas e o uso em rituais religiosos rastafari. O Chile despenalizou o autocultivo e seu consumo privado em 2016. Na Argentina, o autocultivo foi legalizado em 2020 e já existe uma empresa estatal produzindo óleo de cannabis. Seu uso medicinal também foi regulamentado em Peru, Equador e Colômbia. Mas no Paraguai seu cultivo ainda é crime.

“Nós seguimos sendo criminalizadas”, diz Cynthia Farina, presidenta da Mamá Cultiva, uma organização de famílias afetadas por doenças que podem ser tratadas com cannabis. A organização conseguiu obrigar o Estado paraguaio a prover óleo medicinal de cannabis a quem precisa. Mas não conseguiu o objetivo principal: o direito de plantar em casa, como fazem com a menta, a lúcia-lima, a arruda ou a sálvia.

A maconha é usada nos sistemas de saúde dos Estados Unidos (1996), Canadá (1999), Israel (2001), Holanda (2003), Suíça (2011), República Tcheca (2013), Austrália (2016) e Alemanha (2017) e na maioria dos países da União Europeia para reduzir as convulsões da epilepsia, para fibromialgia, artrite, asma e glaucoma, para o acompanhamento da quimioterapia, para o autismo ou ansiedade. Combate outras doenças neurodegenerativas, como a esclerose múltipla, e inflamatórias crônicas, como a doença de Crohn. “Também tem propriedades antitumorais e antidepressivas, como foi demonstrado por pesquisas científicas da Espanha, Israel e EUA”, diz o médico paraguaio Arturo Vachetta.

“Eles obrigam as famílias a comprarem um produto importado e a um custo muito elevado”, diz Farina, cuja filha de nove anos toma há quatro óleos que quase eliminaram as convulsões de que sofria. “A lei é letra morta: não há registro de usuários, nem produção, nem distribuição”, denuncia.

Édgar Martínez Sacoman foi condenado a cinco anos de prisão por produzir óleo medicinal ao mesmo tempo em que o governo concedia a primeira autorização para importar óleo medicinal ao laboratório Lasca-Scavone. A empresa vendia o frasco a 1,8 milhões de guaranis, algo como 300 dólares. Sacoman começou a produzir seu próprio óleo e hoje vende um frasco de 50 ml, que dura duas semanas, por 624.750 mil guaranis. É quase um terço do salário mínimo em um país onde 7 entre cada 10 trabalhadores ganham esse salário — ou menos — por mês.

Além disso, só são importados óleos com canabidiol (CBD), um dos 113 canabinóides que compõem a planta e, portanto, sem tetrahidrocanabinol (THC), o componente psicoativo e primário, que serve como analgésico e neuroprotetor. “Juntos são muito mais efetivos. Por isso queremos fazer nós mesmas, o que garantirá que será barato, de boa qualidade e 100% orgânico”, diz Farina.

A redatora do primeiro projeto de lei de autocultivo do Paraguai é a advogada Lisette Hazeldine. Ela colocou as palavras no texto que apresentou ao senador Victor Ríos e que se converteu na lei 6007, ainda que durante sua tramitação os demais legisladores tenham cerceado as possibilidades do autocultivo.

Em 2020, um novo projeto procurava despenalizar a planta, mas foi vetado pelo Executivo e agora deve retornar à Câmera dos Deputados, com maioria do Partido Colorado [maior agremiação política do Paraguai, de orientação conservadora, que governa o país desde 1946 até hoje, com a exceção do período entre 2008 e 2013]. “A situação não está muito promissora, estão fazendo um forte lobby para negar a aprovação”, opina Hazeldine, que também é cofundadora do Observatório Paraguaio da Cannabis e professora e pesquisadora da Universidade de Pilar. “Fazem isso com desinformação, como ao criminalizar o THC, para conseguir nos encurralar, mas não tem sustentação jurídica nem científica”, assegura.

“A maior barreira que temos é a ignorância. Em um mundo ideal poderíamos nos converter no maior exportador da América de cannabis. Temos a melhor terra”, sustenta a professora.

“É como se proibissem os yuyos [ervas diversas tradicionais] de serem adicionadas ao tererê”, opina José Cardona, integrante da Câmara Paraguaia de Cannabis Industrial, constituída em 2019 por 80 empresas e algumas associações de agricultores. O cânhamo é a maconha, são a mesma planta: só que a indústria deu esse nome às espécies escolhidas e hibridizadas pelo seu baixo conteúdo de THC — que em sua maior parte está nas flores — para se afastar do estigma social.

Por iniciativa do Senado, um decreto presidencial de outubro de 2019 batizou o cânhamo industrial como “cannabis não psicoativa” e estabeleceu as normativas para sua produção, entre elas, a de que o conteúdo de THC seja menor que 0,5% — a maconha recreativa, por sua vez, costuma superar os 6% — e que o Ministério da Agricultura faça sua gestão. Em agosto de 2020, outro decreto lançou um programa nacional para a investigação, produção e comercialização do “cânhamo industrial (cannabis não-psicoativa)”, mas até agora não saiu do papel.

“O cânhamo segue sendo manejado de modo muito restritivo, com entraves fitossanitários e burocráticos”, diz Cardona, engenheiro agrónomo que há cinco anos viu no cânhamo uma nova oportunidade e quer produzir e exportar. “É um contrassenso que, em um país onde as condições de clima estão dadas e a planta está extremamente adaptada, não se possa reverter a ilegalidade”, argumenta.

Cardona e a Câmara da Cannabis denunciam que o governo “não fez licitação pública, nem concurso” e, por isso, “tudo ficou nas mãos de doze farmacêuticas, escolhidas a dedo”. O empresário destacou o paradoxo de que a planta esteja sendo apropriada pela mesma indústria farmacêutica que sempre a estigmatizou. “O discurso das farmacêuticas é que só elas podem fazer a cannabis medicinal, coisa que não é verdade, pois é muito simples de produzir”, afirma.

O governo anunciou que o cânhamo industrial daria trabalho a 25 mil pequenos agricultores paraguaios, fomentando o desenvolvimento do campo. No entanto, tudo ficou nas mãos da Healthy Granes, propriedade de Marcelo Demp, um empresário paraguaio que foi condenado em janeiro de 2020, junto com seu irmão, por falsificar documentos de outra das suas empresas, Latin Farmes, nas costas de seus sócios. É a única empresa autorizada até agora.

A Healthy Grains assegurou, em setembro de 2020, que era a primeira empresa paraguaia e da América Latina a exportar alimentos derivados do cânhamo industrial aos Estados Unidos. Disseram ter enviado 500 quilos de grãos descascados, 350 quilos de farinha sem gordura e 150 litros de óleo de cânhamo. “Todos deveriam ter um lugar ao sol no negócio da cannabis, não somente a Healthy Grains”, resume Cardona.

Diante de tal situação, a desobediência civil se estendeu para além de mães e pais que, desesperados pela dor de seus filhos, produziam em segredo em suas casas. Agora também empresários e associações médicas decidiram descumprir as leis de propósito e publicamente.

Uma experiência de desobediência civil é a do empresário Juan Carlos Cabezudo, pioneiro na exportação da chia no país que hoje é o maior exportador mundial. Em 2016, quis colocar suas redes e seu capital na cannabis, mas a Receita Federal proibiu durante três anos a primeira importação de sementes de cânhamo no país. Apodreceram na alfândega.

“Não fizeram reuniões com pequenos produtores, nem com empresários, nem com a academia, com a Universidade Nacional; não fizeram nada. Não existe um laboratório público. É um caminho sem saída”, afirma Cabezudo.

Desde então, ele tem promovido a regulação da cannabis de forma direta a alguns passos da capital. Em uma propriedade alugada, criou a Granja Madre e produz milhares de plantas de maconha para dar às famílias que necessitam do Mamá Cultiva e nas praças de Assunção. Como salvaguarda, ele se denunciou à Receita, que em três anos não o perseguiu.

Ele já organizou congressos sobre a cannabis com especialistas internacionais e pode falar sobre o assunto por 12 horas seguidas se necessário. No final de 2020, criou uma marca chamada Kokuesero, que doa o óleo canábico com todos os canabinóides para pessoas sem recursos e os vende com nota fiscal, num custo que é menos da metade do preço praticado pela farmácia Scavone.

Além da capital, San Pedro é um dos estados mais empobrecidos do Paraguai e que possui a maior concentração de pequenos agricultores. Assim como em Amabay, Canindeyú e Alto Paraná, também tem plantações ilegais de maconha que muitas vezes são o único sustento de milhares de famílias.

“Enquanto isso, o terrorismo de Estado recai sobre o produtor que não tem a mínima intenção de se dedicar a esse ofício, mas o faz porque não tem alternativa”, explica Fran Larrea, professor e deputado estadual de San Pedro. “Mas os traficantes não são presos, ficam protegidos”, diz.

“Precisamos de uma solução agrária integral e a cannabis pode fazer parte dela se não ficar só entre os empresários”, argumenta Larrea. “Existe uma forte suspeita de que com a legalização o preço cairia. E esse é um grande medo que as pessoas têm, porque não plantam pelos benefícios da planta ou por seu uso recreativo, e sim pelo preço”, acrescenta.

“Os empresários vão fixar um preço irrisório como com qualquer outra colheita abundante e o agricultor ficará só”, lamenta. Por isso, ao lado de Cabezudo, trabalha na expansão da marca Kokuesero com uma cooperativa de pequenos produtores de San Pedro chamada Copacan. Mas projeta que, para conseguir firmar a ideia, os agricultores locais precisarão de uma explicação profunda. “Não vamos conseguir sucesso com silêncio. Precisamos de uma cooperativa agrícola direcionada para a educação e conhecimento de todas as plantas”, diz.

Pacientes, mães e pais, empresários, agricultores e pesquisadores trabalham para que o Paraguai regule o cultivo e o uso da chamada erva maldita. Mas os governantes dão passos lentos demais na direção de um caminho que se mostra possível: ser o maior produtor legal da América do Sul, gerar ganhos públicos, melhorar a saúde e gerar empregos com uma planta que no país quase que cresce sozinha.